Peças Processuais e Contratos

20
Jan 12

 

Ex.mo Senhor Doutor Juiz do

Tribunal Administrativo do Círculo de Lisboa

Proc. …/01 4.ª Secção

Recurso Contencioso

 

JCM L.da, sociedade por Quotas, com o capital Social de cinco mil euros, matriculada na C.R. Comercial de Sintra-Cascais sob o n.º  …, Contribuinte …, com sede na Rua A. M, Lote 4, 2.º A, 2725 Mem Martins, contra-interessada nos autos em epígrafe, vem, notificada que foi para o efeito, apresentar, nos seguintes termos as suas:

 

ALEGAÇÕES FINAIS

 

I - Os factos

 

O M. P. Junto do Tribunal Administrativo de Circulo de Lisboa, interpôs o presente recurso contencioso pelo qual requer a declaração de nulidade das deliberações da Câmara Municipal de Sintra relativas ao alvará de Loteamento 4/95, por falta de parecer prévio da CCRLVT e a anulação deste por divergência do título com as informações finais.

Tal loteamento devidamente averbado na 1.ª C.R. Predial de Sintra pela apresentação n.º1 de 06-02-95 na descrição do prédio n.º … da Freguesia de Algueirão Mem Martins, autorizou 23 lotes de terreno para construção no aludido prédio ( doc. 1 ), entre os quais o lote 4, com a área de 619 m2, a confrontar de norte com Lote 6, sul com Rua D, nascente Rua E; poente Lote 5, o qual devidamente destacado do prédio original deu origem pela ap. 01 de 06-02-95 ao prédio n.º  da Freguesia de Algueirão Mem Martins, (ainda doc. n.º1 que se juntou)

Para este lote 4, na sequência do mesmo alvará, foi emitida a licença de construção n.º…/96, que no mesmo autorizava a construção de um edifício de 10 pisos acima e 3 abaixo da cota de soleira, com 26 fogos T3, 2 lojas e 26 garagens ( doc. n.º2 que se juntou).

Ora a contra-interessada é a actual proprietária do aludido lote 4, que adquiriu pelo preço de 50.000.000$00, por escritura notarial de compra e venda lavrada a 09.05.1997, na agência da Caixa Geral de Depósitos de Sintra perante o notário do 1.º Cartório Notarial de Sintra ( doc. n.º3 que se juntou), quando na descrição do mesmo na referida Conservatória não constava qualquer registo de recurso contencioso relativo ao alvará de loteamento ../95 a que se vem aludindo, ( doc. 1), tendo-o inscrito a seu favor na mesma Conservatória pela ap. 12 de 06-06-97 inscrição G-17 daquele n.ºda Freguesia de Algueirão Mem Martins e averbado, nele pela apresentação 20 de 29-10-2001, um edifício com 24 fracções autónomas de A a Z já constituídas em propriedade horizontal (doc. 1);

Ou seja, a contra-interessada registou a sua aquisição do lote 4, logo em 06-06-1997 e não só em 2001, como por certamente por “lapsus calami” o douto despacho refere. 2001 foi a data em que averbou o edifício que no lote veio a construir.

A presunção iuris tantum, derivada do registo à data da aquisição, da existência de direitos de edificação inscritos (legitimação), nos precisos termos em que o registo os definia, convenceu a contra-interessada de que tinha adquirido uma posição inatacável, isto é, julgou estar a adquirir um direito a edificar que pertencia realmente a quem lhe vendeu.

Foi pois a confiança e boa fé da contra-interessada na presunção derivada do registo, que determinam que os factos jurídicos que as contrariem, lhe sejam inoponíveis (Menezes Cordeiro, da boa fé... p,. 1249, Manuel de Andrade Teoria... Vol. II, pp. 425-426 ) - no mesmo sentido Rui Alarcão, Invalidade... pp. 243 e 24 nota 112: “a aparência de um direito ou de um estado produz os mesmos efeitos que o próprio direito ou estado”, que foram determinantes para a contra-interessada ter comprado o lote 4.

Depois, mais convicta ficou da estabilidade e inatacabilidade dos seus direitos de edificação adquiridos, com o decurso de mais de três anos entre o seu prévio registo de aquisição - ap. 20 de 06-06-97 - e o registo do recurso contencioso de nulidade - ap. n.º71 de 29-05-2001 -‘ (doc. 1).

Tem pois todos os motivos para ver mantida a licença de construção n.º 366   /96, sobre o lote 4 e seus efeitos, como esperamos demonstrar com o direito, doutrina e motivos determinantes para esta solução. 

 

II - Direito, Doutrina e Motivos determinantes

 

A – O Direito

No caso sub judice estamos perante actos conexos e consequentes. As deliberações camarárias, subsequentes alvarás de loteamento e de construção para o lote 4, desanexação dos lotes para venda, etc.

A nulidade ou anulação dos primeiros acarreta a dos consequentes, pondo em crise a posição jurídica da contra-interessada, que em relação a todos é terceiro beneficiário.

No que diz respeito ao alvará, não cominando expressamente a lei com a nulidade os vícios invocados, cai-se no regime geral da anulabilidade e o prazo de invocação é de um ano após a prática do acto, que já há muito estava precludido, quando foi interposto o presente recurso. Tais invalidades não podem já ser apreciadas ( art.º 28.º LPTA , 279.º CC ) .

No que diz respeito às deliberações camarárias, com a falta de parecer da CCRLVT  preteriu-se uma formalidade essencial, ( requisito- exigência ) que tem como consequência a nulidade do acto ( a jurisprudência, versando mesmo actos praticados pela Câmara de Sintra, é abundante, uniforme e não oferece dívidas – t.b. Freitas do Amaral Direito Adm. Vol II, pág. 245 e ss  ). Tal vício é invocável a todo o tempo e portanto o prazo ainda não tinha sido precludido ( art.º 133.º C.P.A. e art.º 28.º LPTA “ a contrario “ ).

A Câmara, não sendo tal acto revogável ( 139.º C.P.A. ), “tentou a fuga em frente”, fazendo que a CCRLVT “desse o dito por não dito” e viesse, após ofício em que lhe “puxou as orelhas” ( ofício n.º 09879 de 05/08/97 ), dizer que afinal estava tudo bem e que a forma de processo sendo a simples, não implicava parecer prévio ( ofício n.º 15647 de 26/11/97 ).

Argumentam por isso os recorridos particulares que, as duvidas quanto á forma de processo se teriam dissipado com a última posição da CCRLVT, que admitiu ser a forma a simples para o licenciamento do alvará de loteamento, não sujeita a parecer.

Infelizmente para todos os recorridos e contra-interessada, não é à CCRLVT que cabe a última palavra, mas aos tribunais Administrativos. Se assim não fosse o problema já tinha logo ficado resolvido...

A lei, de facto, definia expressamente que nos casos em que houvesse implantação de novos arruamentos e saneamento ou nem todos os lotes confinassem com arruamentos públicos existentes, o processo seguia a forma ordinária com parecer prévio obrigatório da CCRLVT. ( art.º 3.º, 4.º e 24.º  D.L 400/84 e  D.L 352/87 ).

No caso em concreto, pela descrição registral dos prédios que originaram o único prédio loteado, da planta de implantação do loteamento, descrição dos novos prédios resultantes do loteamento, vê-se que resultaram arruamentos novos, implantação de rede de saneamento e esgotos que não existiam, há lotes que só confinam com arruamentos novos.

Infelizmente, por honestidade intelectual, não podemos “tapar o sol com a peneira”... o processo era o ordinário, o parecer prévio obrigatório.

Argumentam ainda os recorridos particulares que a nova posição da CCRLVT teria feito degenerar o vício de formalidade essencial para não essencial.

É uma tese interessante e que seria admissível - seguindo a opinião de Freitas do Amaral  in Direito Administrativo 2.º Vol. A propósito da convalidação dos actos -, se com o novo ofício da CCRLVT a admitir a desnecessidade de parecer, se tivessem conseguido os objectivos que a lei teve em vista ao exigir o parecer prévio, que era o de fazer respeitar as regras urbanísticas e de ambiente na aprovação de novos loteamentos.

Depois de aprovado o loteamento a CCRLVT já não podia fazer respeitar as regras urbanísticas e ambientais ( razão de ser da exigência do parecer prévio ). Se por aquelas razões quisesse emitir parecer negativo, como é que o impunha num processo já concluído? Foi por ver esta impossibilidade que a CCRLVT inicialmente até sugeriu um novo processo de loteamento ao abrigo do D.L. 448/91...

A situação assemelha-se mais ao exemplo que Freitas do Amaral logo a seguir na mesma obra dá:

Quando a lei exige a audição prévia do interessado num processo disciplinar, a decisão ilegal por falta de audição já não pode ser sanada com uma posterior audição; o princípio do contraditório como garantia de defesa já não tinha qualquer utilidade nesta fase...

Resumindo, as invalidades do alvará não podem já ser invocadas por preclusão do prazo para tal; As das deliberações Camarárias, podem e têm como consequência a declaração «ex tunc» da  sua nulidade e a destruição dos actos consequentes.

Chegados a esta conclusão, a questão que se coloca à JCM L.da é a de saber se, mesmo verificando-se a necessidade de reintegração da legalidade, decorrente desta nulidade das deliberações camarárias, haverá alguma norma que faça prevalecer o seu interesse, que é o de um terceiro, que de boa fé, durante um período de tempo mais ou menos prolongado, confiou na estabilidade da sua situação.

É isto e só que as nossas  alegações pretendem esclarecer!

O nosso código civil ( artigo 291.º ), n.º3 do artigo 271.º do C.P.C., e C.P.A. ( art.º133.º n.º2 al.. i ) in fine à semelhança de outros ordenamentos jurídicos, verificada a sua previsão, salvaguardam o interesse de terceiros em nome do valor da protecção da confiança, enquanto corolário do princípio da segurança jurídica, decorrente do estado de direito e dos seus próprios fundamentos.

O n.º 3 do artigo 134.º do C.P.A. como corolário chega mesmo a estatuir que “a declaração de nulidade não prejudica a possibilidade de atribuição de certos efeitos jurídicos a situações de facto decorrentes dos actos nulos, por força do simples decurso do tempo, de harmonia com os princípios gerais de direito”

Estes artigos do procedimento administrativo, integrados com o art. 291.º CC nos termos referidos em II B infra , consagram o princípio da inoponibilidade da anulabilidade do primeiro dos actos, a terceiros que dele tenham beneficiado, desde que se preencham os seus pressupostos.

Ou seja, impedem que, no momento em que venha a ser decretada a nulidade do primeiro acto, se possa fazer valer contra terceiros a invalidade dos actos consequentes que os beneficiaram.

No que tange aos pressupostos necessários de que depende o funcionamento da ressalva consagrada no artigo 133.º, n.º2, alínea i) in fine, do Código do Procedimento Administrativo, com a devida vénia e por suficientemente eloquente, apropriamos com negrito e sublinhado nosso a doutrina de Mário Aroso de Almeida em “Anulação de Actos Administrativos e Relações Jurídicas Emergentes”, colecção teses, Almedina, 2002, pág. 360 a 380, que a seguir quase na integra se reproduz:

 

B – A Doutrina

« . . .Para o efeito de delimitar o âmbito dos actos consequentes que, por terem constituído situações dignas de protecção em favor de terceiros, não devem ser considerados nulos no momento em que a anulação vem a ser pronunciada, deve pautar-se pelos seguintes parâmetros.

a) Sem prejuízo do relevo que, num segundo momento, se deve reconhecer ao critério da consolidação do acto consequente pelo decurso dos prazos de impugnação, afigura-se que a primazia deve pertencer à boa fé do terceiro, por ser nela que deve assentar a confiança que o preceito em análise visa proteger. A luz do citado artigo 291.º do Código Civil, cujos pressupostos se apresentam formulados de forma mais detalhada, afigura-se, pois, que a ressalva que o preceito consigna só deve funcionar quando o terceiro, titular de posição jurídica incompatível com a execução da sentença, se tiver mantido de boa fé, desconhecendo sem culpa a precariedade da sua situação. Fundamento da protecção deve ser, pois, a boa fé subjectiva do terceiro, segundo o princípio da protecção da confiança, entendido num sentido ético que exige a observância dos deveres de cuidado e de indagação que a cada um deve merecer a consideração elementar pelas posições dos outros. Neste sentido, “a aparência dum direito ou dum estado produz os mesmos efeitos que o próprio direito ou estado, em confronto de terceiros de boa fé que tenham agido sem negligência nem imprudência”.

Para a verificação da existência de uma situação de boa fé, haverá que recorrer, neste contexto, a um critério de cognoscibilidade fundamentalmente baseado no grau de conexão que se estabelece entre os actos administrativos envolvidos e, portanto, entre as relações jurídicas que emergem de cada um deles. Se, à partida, é de admitir que o terceiro “é legitimamente presumido estar de boa fé, porque tinha um título que ele tinha boas razões para tomar como válido, isso será de excluir em situações nas quais um homem médio, no seu lugar, devesse detectar a precariedade do acto administrativo praticado em seu beneficio. Há, naturalmente, que partir das circunstâncias do caso concreto e, portanto, das concretas capacidades pessoais, conhecimentos e grau de ensino do terceiro, mas “não basta que o terceiro apareça, salvo prova em contrário, como estando pessoalmente de boa fé, é preciso ainda que toda a pessoa, posta nas mesmas condições, fosse também [capaz] de cometer, normalmente, o mesmo erro.

A imposição efectiva do regime da nulidade, enquanto consequência automática da anulação operada, não será, em princípio, de afastar relativamente a actos que, pelo forte grau de conexão que os relaciona com o acto anulado, não constituam, de acordo com o referido critério de cognoscibilidade, uma situação de confiança na esfera de terceiros. Para que a aplicação do regime da nulidade seja afastada é, assim, necessário, em abstracto, que (i) o acto consequente contenda com a esfera de terceiros, mas que (ii) o grau de conexão que liga o acto consequente ao acto anulado não seja suficientemente estreito para impedir a eventual consolidação de confiança na manutenção do acto conexo, para o que se deverá, designadamente, atender ao carácter formal ou informal dos procedimentos administrativos em causa e às formas de publicidade de que tenham sido objecto. Uma vez preenchidos os requisitos abstractos, estarão criadas as condições para que se justifique averiguar se, em concreto, os bene­ficiários do acto efectivamente desconheciam sem culpa a precariedade da situação em que se encontravam, por aplicação do referido critério da cognoscibilidade — isto é, se os terceiros não estavam advertidos para a peculiar situação de precariedade do acto que os beneficiava, em termos de se poder afirmar que na respectiva esfera jurídica se não constituiu uma legítima confiança na manutenção desse acto...

Em direito civil, tende a entender-se que, para além das situações que são objecto de registo, só devem poder ser opostas a terceiros as situações objectivas, visíveis, ostensivas, que por eles sejam facilmente cognoscíveis — designadamente aquelas que resultam directamente da lei, como, por exemplo, sucede com os direitos legais de preferência, que a lei faz, de resto, derivar de situações públicas ou facilmente cognoscíveis e que, por isso, admite serem oponíveis a terceiros...

Importante, é, entretanto, que o facto da impugnação de certo tipo de actos administrativos seja objecto de publicidade, segundo as mesmas formas pelas quais tinha sido dada publicidade ao acto impugnado e através de anúncios na imprensa. Pelo menos em certos domínios, em que a anulação do acto administrativo pode contender com as posições subjectivas de elevado número de indivíduos, tal publicidade pode ter, ainda que em menor medida, uma função próxima daquela que, no Código Civil, se atribui ao registo da acção impugnatória, para o efeito de afastar a possibilidade de desconhecimento não culposo e, portanto, a aplicação da norma de salvaguarda do artigo 133.º n.º 2, alínea i), do Código do Procedimento Administrativo.

b) Como tinha sido referido, é só num segundo momento, portanto, que, quanto a nós, deve intervir um critério temporal, porventura reportado ao decurso dos prazos normais de impugnação. Afigura-se, com efeito, que a situação jurídica do terceiro de boa fé só deve merecer protecção se tiver mantido até um momento em que se deva admitir que existe uma justificação para a sua confiança na estabilidade da posição em seu favor constituída pelo acto. Por comparação com o disposto no artigo 291.º do Código Civil, o momento que, neste contexto, e na falta de outros elementos normativos, poderá fundar a convicção do terceiro de que a sua posição se tomou inatacável poderá ser o da preclusão dos prazos de impugnação que, como é sabido, tem lugar um ano após a emissão do acto.

O decurso dos prazos de impugnação do acto no qual se funda a posição do terceiro de boa fé sustenta uma atitude de confiança da sua parte na presunção de ter adquirido uma posição inatacável, do mesmo modo que se, em princípio, o registo estabelece a presunção juris tantum da existência dos direitos inscritos (legitimação), nos precisos termos em que o registo os define a favor dos respectivos titulares (garantindo a estes a inoponibilidade dos factos não inscritos e incompatíveis, a não ser nos casos em que o registo seja previamente cancelado, por inválido), o certo é que as normas que protegem a boa fé dos terceiros que tenham registado em momento anterior ao do registo da acção impugnatória fazem com que a respectiva posição se consolide em termos que, para o efeito que nos interessa, podem ser comparados aos que caracterizam a consolidação do acto administrativo, uma vez expirados os prazos de impugnação.

Poderá ser a partir desse momento que — para o efeito de se lhe garantir a manutenção da situação que, em seu beneficio, tinha sido constituída pelo acto conexo — se deve considerar digna de protecção a confiança do terceiro que, sem desconhecimento culposo da situação de precariedade em que se encontrava, tenha confiado na validade do acto e em que ele se consolidou nos prazos normais de impugnação, já que, de outro modo, o acto sempre estaria na contingência de ser objecto de uma revogação anulatória.

c) Constitui ainda requisito de protecção, por aplicação do princípio da boa fé, a existência de um investimento de confiança por via do qual se possa afirmar “ter havido um assentar efectivo de actividades jurídicas sobre a crença consubstanciada”, por o beneficiário ter, “de modo efectivo, desenvolvido toda uma actuação baseada na própria confiança, actuação que não pode ser desfeita sem prejuízos inadmissíveis”. Neste elemento assenta a circunstância de, por regra, o legislador exigir, em direito privado, a natureza onerosa das aquisições de boa fé às quais assegura protecção: “a natureza onerosa da aquisição exprime a constituição de uma situação que, implicando um esforço económico, mereça ser tutelada pelo Direito, ou, nas palavras de Canaris, de um investimento de confiança, o qual, a não assentar no esforço referido, perde necessi­dade de protecção.

A questão não se coloca exactamente nos mesmos termos no nosso domínio. O ponto também é, no entanto, reconhecido no direito administrativo alemão, onde doutrina e jurisprudência pacificamente aceitam —em moldes que se afiguram de todo transponíveis para o campo da nossa análise — como paradigma da situação em que a confiança na manutenção de um acto administrativo não é digna de protecção as hipóteses nas quais o beneficiário do acto não chegou a auferir, a tirar partido ou a fazer uso da posição de vantagem em que o acto o tinha colocado, não adoptando, assim, qualquer conduta que consubstanciasse a sua confiança no acto e na qual se pudesse sustentar a alegação de que a sua remoção seria gravosa para ele.

d) Para além, no entanto, dos pressupostos que acabam de ser enunciados, o preenchimento da previsão do artigo 133.º, n.º2, alínea i), do Código do Procedimento Administrativo, não pode, quanto a nós, deixar, numa interpretação conforme aos princípios constitucionais, de passar, ainda, por um momento de ponderação dos interesses em presença em cada caso concreto, das consequências que para o recorrente e para o próprio interesse público adviriam da manutenção do acto consequente, por forma a evitar situações-limite de manifesto desequilíbrio na tutela que vem a ser assegurada aos interesses em presença.

Neste sentido, parece apontar o facto de, em tese geral, se reconhecer que os diversos pressupostos de intervenção do princípio da confiança actuam de acordo com um modelo de sistema móvel por força do qual se deve atender ao relevo e intensidade dos diversos elementos em presença para o efeito de se apurar da protecção da confiança e se determinarem as respectivas consequências, sucedendo que estas consequências podem, em teoria, consistir, ou na preservação da posição alicerçada na confiança, ou num dever de indemnizar.

Quando, em favor do terceiro, se reunam as circunstâncias enunciadas nas alíneas precedentes, é, em princípio, de admitir que o preceito em análise lhe assegura uma Bestandsgarantie, isto é, um direito à manutenção da situação constituída pelo acto consequente...

Afigura-se, porém, de admitir que a protecção da confiança do terceiro deva ceder nos casos em que a não eliminação da situação que o beneficia se consubstancie numa insuportável lesão do interesse público que a execução da sentença seria apta a reintegrar, ou dos direitos do recorrente. No que a este último aspecto se refere, será de admitir a existência de uma situação de manifesta desproporção entre o interesse do ter­ceiro na manutenção da situação constituída pelo acto consequente e o interesse do recorrente na sua eliminação quando se puder concluir que a manutenção da situação constituída pelo acto consequente causa ao recorrente danos de difícil ou impossível reparação pecuniária — desde logo, avultados danos não patrimoniais —, enquanto os danos que para o beneficiário daquele acto resultariam da sua eliminação seriam facilmente reparáveis em dinheiro. E nesse caso, embora o acto conexo seja destruído e, com ele, a situação constituída em favor do terceiro, este terá direito a uma indemnização. A protecção da confiança do terceiro não assume, então, a forma, mais intensa, da Bestandsgarantie, mas tem, em todo o caso, lugar sob a forma de uma Ausgleichsgarantie...» (fim de citação ).

         Contudo decidir  quando os contra-interessados têm direito à excepcional  Ausgleichsgarantie ( indemnização ) e não à normal  Bestandsgarantie ( manutenção ), é tarefa bem complicada, que tem de ser exercida pelo juiz casuisticamente seguindo uma metodologia e alguns critérios que analisaremos de seguida, tentando demonstrar, porque em nossa opinião, se devem manter os actos consequentes:

 

C – Motivos determinantes para a manutenção dos actos consequentes

 

         Conforme imediatamente supra referido, verificados todos os requisitos prévios, por regra é de manter os actos consequentes aos actos nulos – Bestandsgarantie -.

Só assim não será se a manutenção dos actos consequentes consubstancie uma grave lesão do interesse público que a execução da sentença seria apta a reintegrar e então os contra-interessados terão direito a uma indemnização – Ausgleichsgarantie - . 

Ou seja, à questão de optar pela manutenção ou indemnização subjaz um conflito de interesses que tem de se ponderar. Mas a ponderação destes interesses em conflito é difícil; por um lado, o estado representado pelo M.P., votado à realização do interesse público ( art.º 21.º CRP, 69.º e 71.º ETAF, 46.º n.º 2 RSTA, 821.º n.º 2 CA ), pretende a reposição da legalidade violada obtendo a declaração de nulidade das deliberações camarárias; por outro, a Jaime Carmo Meireles L.da, tem interesse em se opor às consequências da nulidade, que é a destruição dos actos consequentes ( licença de loteamento, construção e de utilização para os respectivos lotes), em virtude da perigosidade que a destruição pode acarretar para os seus direitos e interesses.

A apreciação da gravidade do dano,  para se aferir da sua difícil reparação ou não,  exige da parte do tribunal um juízo de ponderação entre o sacrifício provavelmente resultante da declaração de nulidade das deliberações camarárias para os interesses da contra-interessada e o que decorreria da manutenção do acto administrativo consequente da emissão de licença de construção do lote desta, para a Administração e o interesse público a prosseguir.

O interesse público, por um lado, e prejuízos, por outro, são pois dois conceitos que, harmonizados, determinarão a manutenção ou não dos actos consequentes. Isso implica que o conceito jurídico indeterminado, implicitamente recolhido no art. 133.º n.º 2 al. i) do CPA, há-de valorar-se em cada caso em estreita relação com o interesse público presente na actuação administrativa.

Ou seja, o juiz para decidir a manutenção ou não, tem de proceder a uma avalia­ção comparativa entre o prejuízo que pode resultar para o particular e o que pode advir para a Administração e o interesse público a prosseguir.

A Ponderação destes dois interesses em conflito é difícil, exige uma cuidadosa ponderação, sobretudo no domí­nio daquelas relações jurídicas em que concorrem complexos interesses públicos e privados conflituantes, como acontece nas relações jurídicas poligonais, ambientais e urbanísticas. Para além disso, tudo dependerá da natureza do interesse público em causa e do interesse e do prejuízo invo­cado pelo particular.

Não oferece dúvida que o interesse do estado na reposição da legalidade, visa salvaguardar o interesse da colectividade em ver respeitados as regras ambientais e de construção que asseguram a qualidade de vida das populações. O interesse do estado na destruição das deliberações camarárias e actos consequentes é público.

A lei por sua vez, protege os contra-interessados, mantendo os actos consequentes  -al. i) n.º 2 art.º 133.º C.P.A.-. A intenção é proteger o valor da confiança, enquanto corolário do princípio da segurança jurídica, decorrente do estado de direito e dos seus próprios fundamentos,  alicerçada na presunção derivada da constituição ( submissão da administração à lei ) de que a administração actua em estrito respeito pela legalidade ( pelo menos teoricamente... ). Neste sentido a manutenção dos actos consequentes , reunidos os restantes requisitos, também é do interesse público.

Os interesses em conflito no caso sub judice são pois, ambos públicos; Resta-nos saber qual a  natureza dos direitos em causa:

A imposição do parecer prévio da CCRLVT, tinha a ver com a fiscalização por um órgão de tutela do cumprimento das normas de saneamento, ambientais e urbanísticas que garantem a qualidade de vida das populações, direito este social.

A contra-interessada tem interesse em ver mantidos os actos consequentes para ver protegido o seu direito à direito à edificabilidade,  ( conteúdo do direito de propriedade), à tutela da confiança e segurança jurídica, há habitação e a comunidade em não ver restringido um abstracto direito à habitação, direito social constitucionalmente protegido.

Ambos os interesses em conflito têm como objecto pelo menos direitos de igual valor, sendo que o da contra-interessada abarca uma maior diversidade de direitos.

Assim sendo, com o devido respeito, a balança tende a inclinar-se para o lado do interesse do particular ( v.g. em França, porque se entendeu ser até do interesse público a manutenção de uma situação ilegal, não se demoliram os prédios de um grande  loteamento - exemplo dado por Freitas do Amaral in execução das sentenças dos tribunais administrativos, 2. ed. Almedina, de causa legítima de inexecução da sentença - ).

É um facto que não consagrou o legislador expressamente o critério de ponderação dos interesses em nenhuma disposição legal, deixando ao juiz esta tarefa árdua de o preencher em conformidade com as circunstâncias que confluem em cada situação. O motivo foi porque  quis ter uma perspectiva contrária a todos os dogmatismos e princípios rígidos e uniformes, e postular uma atitude de abertura e relativismo.

Na situação concreta, pelo que se referiu, a manutenção dos actos consequentes às deliberações camarárias e emissão do alvará de loteamento, não destoam deste espírito de  abertura, evita a lesão injustificada, desproporcionada dos direitos da contra-interessada e preserva o equilíbrio que deve existir nas relações dos cidadãos com a administração. «Cette garantie de l’equilibre est» – como refere a recomendação n.º R (89) (8), Strasbourg, 1990, p.11 - «l’affaire du juge»

Depois o prejuízo invocado pelos contra-interessados é, pelas regras da experiência, seguramente elevado ( Preço de aquisição dos lotes, despesas de construção, encargos bancários, lucros cessantes, paralisação de actividade ) e dificilmente contabilizável nesta data. 

Também é de difícil reparação da parte da administração local: Não sendo o nosso sistema o do de juiz-administrador - em obediência ao princípio da separação de poderes -, os tribunais não se podem substituir à administração na execução das sentenças.

A execução de uma indemnização em que eventualmente a administração seja condenada, terá em caso de incumprimento reiterado desta, que ser obtida, depois de muito se penar, nos tribunais comuns, com as conhecidas limitações de penhorabilidade de bens  da administração e insuficiência de bens para se penhorar. Isto é, mesmo que teoricamente o dano seja reparável, depende da boa vontade da administração efectivá-lo. O art.º 823.º n.º 1 do nosso CPC e o DL 256-A/77 são neste aspecto bem frustrantes! A administração cumpre quando e se quiser!

Por tais motivos, é duvidoso o juízo sobre a reparabilidade do danos para desempate dos interesses em conflito.  Um juiz que conclua numa situação concreta que o prejuízo invocado pelo contra-interessado é reparável, está a fazer um juízo de fé na administração; confia em alguém que cingindo o machado do ius imperium com todas as suas prerrogativas, não o branda contra quem lhe pretende cortar a cabeça.

Actualmente já está em vigor o PDM para o Concelho de Sintra, publicado na I.ª Série – B do D.R. n.º 232 de 04/10/99, que prevê para o local edifícios com volumetria até 15 metros ( +/- 5 pisos ), não sendo pois viável em execução de sentença à Câmara Municipal de Sintra praticar um acto substitutivo sem os vícios dos anulados que confira os mesmos direitos para a contra-interessada.

O critério da reparabilidade dos prejuízos, não deve pois, ser determinante; no entanto, mesmo in casu, pela razões imediatamente supra aduzidas, pesa a favor da conta-interessada.

Também, por exigências do princípio constitucional da tutela efectiva, os tribu­nais não podem limitar-se a aplicar critérios abstractos e formais de repara­bilidade do dano resultante da destruição dos actos consequentes, antes se impõe que se considerem as circunstâncias de cada caso, de modo a encontrar uma solução justa, que pondere os interesses públi­cos e privados. A colectividade, o destinatário do acto, terceiros, podem, com efeito, ter interesses extrema­mente diferentes e contrastantes à destruição dos actos administrativos consequentes e os seus potenciais interesses também devem ser salvaguardados.

A manutenção dos actos consequentes e seus efeitos, é também sob este ponto de vista da equidade, a solução mais justa.

 .

III — Concluindo

 

Atendendo aos factos, direito, doutrina, a metodologia e critérios de decisão supra explanados em II, a contra-interessada é pois, salvo melhor entendimento, titular de um direito próprio e inatacável em ver mantidos em relação ao Lote 4 os efeitos das deliberações camarárias, do alvará de loteamento n.º …/95, isto é em ver mantidos os actos consequentes a estes e seus efeitos, nomeadamente a licença de construção n.º …/96 para o lote 4, já que sendo esta acto subsequente, é inatacável nos termos sobreditos pelas efeitos das eventuais declarações de nulidade e anulabilidade requeridas.

“a aparência do direito ou do estado produz os mesmos efeitos que o próprio direito ou estado”... Face ao alvará de loteamento, seu registo, alvará de construção e presunção de que a Autarquia como entidade pública actua no estrito cumprimento da lei, fariam com que qualquer pessoa de normal diligência, na situação da contra-interessada, também confiasse na legalidade das deliberações camarárias.

O decurso até à entrada do recurso contencioso, de mais de três anos desde o registo pela contra-interessada da aquisição do lote 4, bem como de mais de seis desde as deliberações e emissão do alvará – muito superiores aos prazos normais de impugnação -, sem que estes tenham sido impugnados, justificam a confiança da contra-interessada na manutenção da sua posição jurídica.

A contra-interessada comprou  lote 4 por 50.000.000$00 e nele construiu um edifício de vários pisos ( 10 acima da soleira ) que averbou em 2001 na conservatória. Houve também um assentar efectivo de actividades jurídicas sobre a crença consubstanciada da contra-interessada.

O único ponto que podia suscitar dúvida, era o da ponderação dos interesses em concreto `conferir apenas uma indemnização à contra-interessada; mas, não é o caso, como pensamos ter demonstrado!

Primeiro, porque quando reunindo-se os pressupostos anteriores, é em princípio de admitir que o preceito da al. i) in fine do n.º2 do art.º133.º do Código de Procedimento Administrativo, assegura à contra-interessada uma Bestandsgarantie, isto é, um direito à manutenção da situação constituída pelo acto consequente”

Depois, porque os critérios da natureza dos interesses em conflito, prejuízos invocados, reparabilidade dos danos, equilíbrio entre a administração e particulares, a solução justa no caso concreto, fazem sobrepesar os interesses da contra-interessada.

 

-xxx-

 

Seja qual for a decisão sobre a validade das deliberações camarárias e do alvará de loteamento, inclusive a de nulidade, nunca pode esta, com o devido respeito, Meritíssimo Juiz, implicar a destruição dos actos consequentes relativos ao lote 4  ( al. i n.º 2 art.º 133.º C.P.A. ) nem destruir os efeitos já produzidos pelos mesmos em relação a este lote ( n.º 3 art.º 134.º C.P.A., este artigo com  dúvidas, porque ainda não decorreu o prazo de dez anos que refere Freitas do Amaral ), quer porque, por todos os motivos supra aduzidos, a contra-interessada tem interesse legítimo na manutenção dos actos consequentes, quer porque a aplicação dos princípios gerais do direito assim o impõem.

 

De resto, parece ser esta também, se bem interpretámos, a tese sufragada pelo Distinto Procurador que representa os interesses do Estado junto desse tribunal,

 

e que igualmente, V.Ex.a, Meritíssimo Juiz, estamos em crer, por ser a que resulta dos factos, da lei, da doutrina, dos princípios gerais de direito e do princípio da equidade na aplicação da justiça ao caso concreto, reproduzirá na decisão que vier a proferir.

 

 

Junta:  duplicados

 

O Advogado

 

JV

 

 

publicado por Manuel Maria às 11:23

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